domingo, 28 de março de 2010

"Indolência mórbida" - um conto de Artur Lins


Peguei o telefone e disquei o número. Ela atendeu, e eu disse:
“Fui eu quem matou seu filho”.
Desligo.
Se essa história se desenvolvesse, um romance teria de ser escrito. Daqueles com centenas de páginas, marketing de grande editora, roteiro para hollywood e a inexata classificação de thriller.
A personagem realmente teria perdido um filho. Manejaria fundos para descobrir quem fez a ligação. Dias, meses passariam. Ela prepararia uma tocaia. Invariavelmente, e para não expurgar o drama do final, ela mataria o autor do trote. Nunca saberia – ah!, mas nós leitores sim – que sua vítima era inocente, uma pessoa incapaz de matar uma mosca, que aliás dava apelidos às espécies de insetos que habitavam sua casa.
Ele mereceria essa morte?
Disco outro número: “Fui eu quem acabou com o seu casamento”.
Ela teria um amante. Não teria mais como esconder, ele saberia. Não, na verdade ela saberia, pois ele é quem teria um amante. Casado, três filhos e duas rolas, um privilegiado.
Toca o telefone. Mamãe.
Sou lindo, um príncipe e preciso de alguém para lavar minhas roupas. Não preciso de dinheiro, mas vou levar sim os ingredientes para ela preparar aquela lasanha. Sim, mãe, entendi o recado, mas gosto de ser anunciado como “participação especial” nos créditos das reuniões de família.
Não quero parecer pretensioso... Não tenho pretensão a nada. Sou o que sou, faço o que faço.
Sempre deixo anotados os números discados. De vez em quando alguém com identificador de chamadas me liga de volta. Eu também tenho identificador, então verifico o número, checo na minha lista e deixo a máquina cuidar da ligação.
Uma voz sedosa, maravilhosa – que eu paguei para ter – diz:
“Destilados Bartov, boa tarde”. Muito simples e natural.
A pessoa do outro lado geralmente desliga. Ou então responde ao “boa tarde” e diz que foi engano.
Você deve estar pensando que eu estou sentado numa poltrona reclinável, comendo batatas chips e zapeando a tv, enquanto mato o tédio com essas ligações.
Os minutos passam, e desta vez ninguém liga de volta. Eu me levanto e vou buscar outra cerveja para acompanhar as batatas. Aproveito para separar um dvd legal, pois a tv tá um lixo.
Gostei da coisa do casamento, acho que vou ligar praquele número de novo. Esse pensamento me entorta um sorriso.
Minha “mesa de trabalho” – cerveja, batatas, telefone, controles e notebook – tem uma daquelas manchas de copo difíceis de limpar. Por isso eu coloco o copo sempre no mesmo lugar e assim evito usar na mesa outros produtos químicos além de água e álcool. Nada como trabalhar em casa...
Quando eu ligo nunca faço ameaças, sempre falo de coisas que eu fiz, coisas que eu poderia ter feito... Quer dizer, falo sobre coisas que aconteceram e espero, para meu deleite, que esses fatos se tornem verdade. Mas como saber, não tenho como saber.
Eu sempre penso nisso, mas ligar novamente não é uma opção. O impacto inicial já passou, e eu não sou nem terrorista nem torturador. I just like to play games. Assim eu desminto meu pensamento e evito uma autossabotagem sem tamanho, apesar de que não conhecer as reações dos meus interlocutores é sempre um tormento.
Perdi a vontade de fazer outra ligação. Acho que foi por ter me comprometido. Tenho de sair daqui a pouco.
Começo a arrumar minhas coisas. Desligo a televisão e o dvd, recolho copo, garrafa e coloco as sobras e sujeiras no saco das batatas.
Tomar um banho, por uma roupa decente, pegar os ingredientes da lasanha e ir pra casa de mamãe. Provavelmente um almoço comemorativo para São Longuinho. Ela deve ter achado alguma coisa perdida essa semana, ou mês passado. Provavelmente não muito importante.
Tudo certo, tudo pronto. Ingredientes ensacados, banho tomado, celular no bolso.
Algo me incomoda. Sento no sofá e a inércia faz o seu trabalho. Sei que era algo daqui, quando eu estava sentado aqui, quando eu estou sentado aqui e que persiste e persiste.
Tenho de fazer uma última ligação antes de sair.
Tiro o fone do gancho, disco e aguardo: “Eu acabei de atropelar o seu filho”.
Mamãe não tem bina.
E, respondendo à pergunta feita no início: sim, ele mereceria aquela morte.

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Artur Lins se define como um representante da ficção especulativa da nova literatura de Pernambuco. Já teve contos publicados na antologia Tudo Aqui Fora Escrito, Tudo Fora Escrito Ali e no Suplemento Pernambuco, editado por Raimundo Carrero. Faz parte também da produção da Festa Literária FREEPORTO, organizada pelo grupo Urros Masculinos.

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sexta-feira, 12 de março de 2010

"Femina Pulchra" - um conto de Mauro Siqueira

Não vi quando ela entrou e perguntou: “Tem alguém aqui?”. Continuei meu desenho no caderno. Enquanto todos nós esperávamos a boa vontade do professor de aparecer, eu rabiscava com ódio o papel, a grafite 5B do meu lápis assoviando e brilhando. “Bom dia” - já quase meio-dia quando o puto entrou -, levantei a cabeça e me deparei com ela... na verdade, com as suas costas... Não me importo com o resto, a voz, sorriso ou brilho de olhos. Sem inícios, meios e fins: não vou cair em clichês. Não faria mais nada naquela sala a não ser contemplar, ajeitei minha cadeira ficando bem certinho à sua: vestindo tomara-que-caia amarelo, deu àquelas costas largas o status de painel - um muralismo de D. Rivera!

Ereta. Marmórea, quase. Uma escultura. No início parecia imóvel, mas se você reparasse bem, mexia-se naquela posição, o pescoço acompanhando os passos do professor; os ombros e pescoço, aos poucos, foram relaxando, afinal aquela primeira semana de aula era desconfortável para todo mundo – calouro ou veteranos, e ela podia ser um ou outro. No meu caderno, o desenho da minha versão de “O Nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli, dando lugar àquelas costas e sua dona de cabelos claros e curtos sob a nuca, num desses cortes modernosos da moda, aqueles pelinhos finos... não os tinha - era apenas a pele que, agora, de anverso para o público, exibia desnuda uma sinuosa silhueta alva, a coluna delineada e no seu término, uma borboleta tatuada... Ah!, Deus, lembrei de Phillip Pullman e de seu livro...; “Que linda borboleta”, lembrei de dona Eusébia e sua filha coxa em Machado de Assis (esta ao contrário daquela, não era preta, era verde). A tatuagem, bem na base que divide o fim do pescoço e o início das costas (qual nome terá essa área?); passei a observar os movimentos: em função da escrita, as costas moviam-se num compasso quase musical, saliente; aquele osso triangular que se acopla na parte posterior dos ombros: as omoplatas - um nome tão feio para algo tão bonito!

Deveriam se chamar asas!

Os gestos rápidos e bruscos davam-lhe tal qualidade; asas de uma borboleta já descrita. Entenda-se que não havia nada de mágico naquele ser à minha frente, nada ideal; não fazia ideia do seu rosto e não me importava. Eu estava completamente fora dos eixos, de mim! ao olhar aquelas manchinhas que recobriam toda a superfície, alguns poucos fios loiros, espinhas - muitas - e que lindas espinhas, sentia o perfume da pele, latescências novas de uma área, até então tão, tão... anti-erógena – minha voz até ressoa diferente. Uma pele coberta de imperfeições perfeitas, e eu, tentado a fazer besteiras; sentia-me cada vez mais perto, compelido a estar de fato pele a pele com aquela estranha Galateia! Parecendo perceber a todo o momento passava a mão pelas costas, negava-me por instantes a sua visão, num jogo traiçoeiro.

Eu não podia mais, não sou dado a observações demasiadas e... aliás, uma zona erógena sim! Afinal, em que lugar os vampiros arrebatam as mocinhas lânguidas, indefesas: na base do pescoço. Vi a minha mão tal qual a de Nosferatu: a milímetros do pescoço da vítima, no clássico filme alemão... e como nele recolhi meu gesto assim que pressenti... No ombro, repousou uma das mãos, negaceando-me! - era tão lindo gesto! e... surpresa, no dedo médio, outra borboleta (era um sinal), minha mão quase tocou a dela, corajosamente a minha vagava pelo ombro desnudo da desconhecida quase a tocar-lhe, eu não estava nem aí para o resto do mundo, quanto mais da turma, afinal era uma eletiva: eu queria aquelas costas! Meu estômago se revirava, parecia ter borboletas voando dentro dele. Um novo desejo me fez recolher a mão, uma sede por aquela pele me fez aproximar os lábios em direção àquela borboleta... inclinei para frente, senti os olhos da pessoa do lado (e do outro também) “Gente!”, alguém disse, o professor no seu latim, eu segui em frente, já via os poros, senti mais abrasadamente o cheiro do creme hidratante, aquela nudeza, aquela borboleta, fixei o olhar no desenho, parecia vivo, de um brilho verde-esmeralda, verde-parnaso, crescente, pungente, como o das asas do inseto - o toque era inevitável. O professor fez uma pergunta, ela ergueu a mão em que tinha o anel: “Femina pulchra”, respondeu com orgulho na voz. E então, os meus lábios naquelas costas...

Mal toquei na pele desejada e, ainda com a mão estendida, virou-se sobressaltada; e antes de sentir o anel com sua borboleta no meu queixo ou de borrar de sangue a minha Vênus flanqueada desenhada no meu caderno, vislumbrei a borboleta verde desgrudar-se violentamente, levando consigo um pouco daquela pele, ao voar pela janela e levar com ela toda a sua beleza e minha sanidade.
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Mauro Siqueira é carioca, rubro-negro, escorpiano e míope até a medula. Formado em Letras pela UERJ, é assessor editorial. Publicou em 2008 De vermes e outros animais rastejantes (Ed. Multifoco), seu primeiro livro de contos. Prepara o segundo livro, também de contos, Simplesmente complicado. É colunista d'O Bule e bloga em De vermes e outros animais rastejantes

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