quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Que livro mudou sua vida?

Pergunta difícil. Mas alguns corajosos se propuseram a responder.

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26 poetas hoje - Heloisa Buarque de Holanda (org.)

Durante muito tempo resisti à Poesia Marginal por acreditar que se tratava simplesmente de um projeto literário de desbundados cariocas. Essa resistência cedeu quando me aproximei de forma mais madura do tempo histórico dessa turma. Além disso as minhas incursões no rock setentista foram importantes para compreender ainda mais a lógica dessa geração. O 26 poetas hoje traz uma série de poetas grandiosos como Waly Salomão, Cacaso e Ana Cristina César, e ainda nos permite observar como uma outra turma ficou pra trás. Creio que curiosamente a poesia marginal conseguiu separar "o joio do trigo" imortalizando aqueles de maior consciência de linguagem. Esta obra me ajudou a conceber a poesia antes de tudo como espetáculo, performance, boemia, loucura, jovialidade, anti-caretice.”

Tiago Rattes é professor de história e poeta.

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Encontro marcado – Fernando Sabino


O livro que mudou minha vida foi Encontro marcado, do Fernando Sabino. Li quando tinha dezenove anos, rabiscava os meus primeiros escritos e queria aprender mais sobre o ofício, mas tudo que lia e estava disponível em minha casa (Machado de Assis, Dostoiévski, Milan Kundera, etc) era demais, me esmagava, jamais iria escrever daquele jeito, era melhor desistir. Com o Encontro marcado, finalmente lia alguma coisa que podia imitar. Não foi o escritor que abriu a minha cabeça, mas foi o que me mostrou que escrever não era tão difícil, e isso me deu autoconfiança. Valeu, Sabino!

Anderson Pires é professor de literatura, escritor e pai da Janaína.

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Antologia poética – Vinicius de Moraes

Tenho na lembrança o primeiro poeta que me fez lacrimejar... aos quatro ou cinco anos... era Vinicius de Moraes. Ao ouvir o poema/música “A Porta” na voz de minha mãe, senti pena, de imediato daquele objeto que era feito de matéria morta. Foi o primeiro poeta que apareceu em minha vida e, como não poderia deixar de ser, o primeiro livro que busquei. Ainda criança, uma antologia do “poetinha” caiu em minhas mãos (uma fotocópia na verdade, para dar o tom transgressor!) e pude ler, despido de muitos valores, aqueles versos. Depois disso, descobri que poesia era um afrodisíaco e “Minha Namorada”, “Soneto de Fidelidade”, entre outros foram muletas para minha timidez. Bom, na época em que descobri, ainda não entendia o que significaria a poesia para mim, mas hoje sei que fez diferença, por isso um saravá ao capitão do mato Vinicius de Moraes.

Luiz Fernando “Mirabel” Priamo é poeta, músico e jornalista.

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Pergunte ao pó – John Fante

Quando Bukowski, no prefácio de Pergunte ao Pó, grita “eu sou Bandini, Arturo Bandini”, acho que já aponta o motivo pelo qual John Fante escreveu um livro que agora cito como o último livro que mudou minha vida. Talvez vontade de não ser Camila porque Camila, aos olhos de Bandini, é inconstante e perdidamente apaixonada por outro. Talvez por vontade de ser o famoso e brilhante escritor Arturo Bandini, talvez por compartilhar de seu coração negro. Talvez porque o livro trate das ruas e das pessoas e da escrita de um jeito que eu pense que está tudo vivo e acontecido e tenha vontade de andar por onde Bandini passou. Talvez pelo que eu não seja e não tenha agora, seja um excelente livro. Até que venha o próximo, que nunca desbanca o anterior, mas o acrescenta.

Lia Duarte Mota é aluna do mestrado em literatura brasileira da PUC-Rio

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O vôo da madrugada – Sérgio Sant’Anna

Esse tipo de escolha é difícil demais, ainda mais para gente como eu que tem mania de fazer Top 5 de tudo (sim, Rob Fleming me ensinou direitinho). Vou ficar sem dormir pensando que poderia talvez ter escolhido outro livro, mas acho que esse é o que menos vai me tirar o sono. Sérgio Sant’Anna é o melhor escritor brasileiro vivo e quem não concorda é maluco. O vôo da madrugada (2003) é seu livro mais recente e nele Sérgio desenvolve sua obsessão com a linguagem e o problema da representação da realidade, que já vinha norteando sua obra desde O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1984). Sérgio foi o escritor que me mostrou como são tênues e ao mesmo tempo distantes os limites entre arte e vida, linguagem e representação. Ler esse livro é gritar “gênio” ao fim de cada conto (sim, eu faço isso) e nunca mais olhar a literatura do mesmo jeito. Sérgio Sant’Anna faz questão de jogar na cara do leitor o quanto a arte é simulacro, reafirmando sempre que literatura não é vida, mas também sugerindo que talvez seja e, se for, como poderia não ser? Complicado e contraditório sim e é aí que está a graça. Fazer a arte do seu tempo: esse é o compromisso de Sérgio Sant’Anna. E ele cumpre com muito, muito estilo."

Laura Assis é aluna do mestrado em estudos literários da UFJF.

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Memórias de minhas putas tristes - Gabriel García Márquez

Não sei quando exatamente a literatura passou a mudar, de fato, a minha vida... mas sei que isso aconteceu. Um livro que me marcou muito, não sei quando li, nem como eu tomei conhecimento dele, talvez por ser um best-seller. Mas, pouco importa, a verdade é que Memórias de minhas putas tristes mudou alguma coisa em mim e eu enlouqueci: quis ler todos os livros do Gabriel García Márquez, esse colombiano que fez com que eu me apaixonasse por Santiago, Florentino Ariza e Fermina Daza, pelo amor absurdo de Sierva Maria e o Sacerdote Caeytano, por toda a família Buendía, me fez querer mudar pra uma cidade chamada Macondo onde tinha um linha de trem, um bananal e uma família inacreditável. Tudo isso por causa de um velho de 90 anos e nenhum amor.”

Pamella Oliveira é aluna do curso de Letras da UFJF

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O mistério do trem azul - Agatha Christie

Eu poderia escolher Saramago, ou Harry Potter, mas, pra quem me conhece, seria previsível. Então opto por um livro que pode ser ignorado por muitas pessoas, mas tem um significado especial pra mim. Aos 11 anos, peguei O mistério do trem azul na biblioteca do colégio e, em meio a protestos de professores ("isso não é livro pra sua idade, vai ler O pequeno príncipe"), me apaixonei pela Agatha Christie, com sua fórmula policial pronta e já batida, mas que sempre acaba funcionando. E foi ali que começou minha paixão pelos livros, que acabou por mudar o curso da minha vida e acabou me trazendo aqui, nesse blog.”

Larissa Andrioli é aluna do curso de Letras da UFJF

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Mas e você? Que livro mudou sua vida?
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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A arte da deseducação

Erotismo, liberdade e vida em Cosmologia do impreciso, de Oswaldo Martins



Um texto, independente de seu conteúdo, é sempre um fato cultural. Portanto, depende da época, dos valores, do escritor, dos grupos sociais, da cultura em que foi elaborado. Assim, era de se esperar que numa sociedade cada vez mais explícita, que exibe relações sexuais e outros programas de cunho sensual em horário nobre, a recepção a um livro de poemas eróticos fosse não agradável, mas no mínimo crítica – que o público o recebesse como recebe qualquer outro livro, e em torno dele girassem discussões como as que giram em torno de Saramago ou qualquer outro escritor, ou seja, que o texto publicado fosse problematizado. Certo? Não. Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após publicar Cosmologia do impreciso (7Letras, 2008), seu quarto livro, e ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque, onde trabalhava, para falar na sala de aula sobre seu trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico-pornográfico.

Cosmologia do imp
reciso é, antes de tudo, um belíssimo livro: combate a separação entre corpo e espírito para defender a liberdade e a afirmação da vida acima de tudo. Apropria-se da tradição poética, faz diversos intertextos com artes plásticas e música e atinge um objetivo importante: transgride. É sempre perpassado pelo passo à frente, pela afirmação de algo novo ou que, ainda que já tenha sido afirmado, continua fora de circulação. Uma ideia essencial para a compreensão de Cosmologia do impreciso é a da celebração do corpo e do espírito. Pois é disso que trata a poesia de Oswaldo: celebração. E, a partir disso, transgressão, libertação. A epígrafe geral do livro fala deste par: “a boca é vinho tinto / as mãos são de absinto / e a cintura dela é a estrela por nascer” – os versos de Aldir Blanc misturam elementos ligados ao prazer carnal (boca/vinho, mãos/absinto, cintura) com o elemento sublime, puro (estrela). Mais que mistura, une no mesmo corpo e torna, então, o corpo e o espírito inseparáveis.

Se já é impossível ler um livro de Oswaldo Martins sem ser sempre assaltado pela mesma palavra, escrever sobre o poeta sem tê-la em mente é impensável. A ideia é sempre transgressão: o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sim, grafada com u), “foder”? Em Cosmologia do impreciso, sexo e vida se confundem. “Bucetas” pode dar lugar a “Eros” – e Eros não é menos que vida.

quando quadros e livros
bucetas são

não são bucetas que se levam
aos livros e quadros

senão que quadros e livros
buscam

o que de bucetas
são


O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não está somente na exaltação do sexo, como o poema citado mostra. Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta volta-se para a religião: começa desconstruindo a imagem de “virgem” de Maria e passa então a uma série de suposições que desmontam os valores da sociedade cristã ocidental. Esta parte do livro é composta por 11 poemas, todos devendo ser lidos com a palavra “se” no início.

4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças

e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas

as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia

mais que a morte
seria a carne

nossa unção


A adoção do erotismo como postura política é uma visão possível durante a leitura de Cosmologia do impreciso. Propor um mundo mais livre dos entraves colocados pelos valores da sociedade ocidental faz parte da proposta modernista e atinge diretamente a formação intelectual de Oswaldo Martins. O erotismo não é a sexualidade, e sim sua metáfora, e o texto erótico é a representação do erotismo. Mais: o texto erótico pode ser também uma metáfora da liberdade. E cada poema de Oswaldo Martins é sempre uma afirmação disso. Esse caráter pode ser entendido se pensarmos que Martins não parte de um ato sexual para criar sua poesia – ele utiliza elementos do sexo para problematizar outras questões, como é o caso de “antimetafísica das apreciações”:


quadros
assim como livros

cheiram a buceta

há livros e quadros
bolorentos

dir-se-iam uma buceta
sem uso

como dizem das bucetas
bem usadas

há quadros e livros
que relampejam


A “buceta” do poema não é física. É um elemento que remete à sexualidade em geral e pode, portanto, ser relacionada à arte, já que é isso que Oswaldo propõe: a transformação da arte em sexo, em fonte de prazer, antes de qualquer coisa. Por isso, Cosmologia do impreciso é mais que um belo livro: é um livro movido por uma tese que atinge a todos nós e a qual todos deveríamos pensar e discutir: até que ponto falta tornar nossa vida mais sexual, no sentido mais erótico da palavra.


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Oswaldo Martins nasceu em Barbacena, MG, em 1960. Formou-se em Letras na PUC-Rio. Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ, é professor de 2º e 3º graus. Publicou os livros desestudos (2000), lucidez do oco (2002) e minimalhas do alheio (2004), todos pela 7Letras.

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Cosmologia do impreciso
Oswaldo Martins
Editora 7Letras
124 páginas
Preço: R$25,00