sexta-feira, 18 de março de 2011

Eu é um outro e tudo é caos

Alteridade e ambiguidade em Do fundo do poço se vê a lua, de Joca Reiners Terron.

Não se reconhecer. Desejar ser outro. Querer nascer outra vez. Normal? Pode ser uma fase. Uma crise. Ou até um dia ruim. Mas e se essa idéia é a obsessão que norteia toda uma vida? Até onde alguém iria para se perder e se achar diferente? No caso de Wilson, protagonista de Do fundo do poço se vê a lua (Companhia das Letras, 2010), a qualquer lugar. Mas o problema acaba sendo resolvido no Egito, pois o compromisso de Joca Reiners Terron, um dos 17 escritores participantes do projeto Amores Expressos, era justamente contar uma história de amor que se passasse naquele país. E como o próprio autor disse em entrevistas, uma de suas primeiras decisões relativas à trama do livro foi a de não partir do óbvio, uma história de amor romântico – “Imaginei que era o que todo mundo ia fazer”. Terron optou por colocar como tema central do enredo um amor fraternal nem um pouco ortodoxo.
Entram em cena então o já citado Wilson e seu irmão Willian (esses dois nomes, retirados do conto de Edgar Allan Poe, são apenas o começo das inúmeras referências à mitologia do duplo citadas no romance). Irmãos gêmeos, univitelinos, os dois guardam uma grande diferença que, ao mesmo tempo, equilibra e desequilibra uma equação que deveria ser simétrica. Enquanto William é um homem masculino, viril, tanto internamente quanto na aparência externa, Wilson sente-se desde sempre diferente: feminino, tem uma inteligência mais sofisticada e cresce com referenciais nada convencionais. Um desses referenciais, a figura de Cleópatra, se transformará na obsessão que irá guiá-lo por toda a vida na busca de sua própria identidade.
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Eu percebi muito cedo que poderia nascer de novo. E renasci mesmo, não numa câmara hiperbárica ou coisa assim, mas numa mesa de cirurgia, e não estou me referindo a uma cesariana. Meu primeiro nascimento foi em São Paulo, em janeiro de 1967. E a segunda vez foi na África, no Egito, na cidade do Cairo, a Mãe do Mundo, e mais precisamente no palco do Club Palmyra, quase quarenta anos depois. É necessário, porém, esclarecer que muita coisa aconteceu entre esses dois nascimentos, e que tudo partiu de um simples equívoco.
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Terron passou um mês no Cairo e em seu blog na época classificou o Egito como um “paradoxo ululante”, pois enquanto “templos e monumentos de 3.000 anos AC continuam intactos, em muito breve as recordações do século XIX e XX não passarão de ruínas”. Atualmente o país está literalmente caindo aos pedaços: “Aqui no Egito um número impressionante de pessoas morre soterrada pela própria casa ou achatada nas ruas por sacadas que despencam sobre sua cabeça.”. Bem diferente dos livros de história, o país é, hoje em dia, um lugar decadente e desagradável.
Mas o perigo vai além. Enquanto cobria a celebração dos egípcios pela queda do presidente Mubarak, na Praça Tahrir, no Cairo, a equipe da CBS News foi rodeada por uma multidão de manifestantes e, no meio da confusão, a repórter Lara Logan se perdeu do resto de sua equipe. Foi encontrada cerca de 20 minutos depois, sendo agredida sexualmente por um grupo de homens egípcios que se aproveitaram do tumulto. É exatamente esse o Egito das páginas do romance de Terron. Uma importante cena do livro, inclusive, constrói-se em torno do perigo e da violência latente nas ruas do Cairo, onde episódios de estupro e assédio sexual – na maior parte das vezes tendo turistas como vítimas – acontecem com uma freqüência assustadora.
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Where are you from, o rapaz pronunciou de maneira quase incompreensível. Whérrráriúfrrrôum, ele repetiu cheio de Rs e avançando para o meu lado. Faltava um ponto de interrogação na frase, o que a deixava mais parecida a uma denúncia do que a uma pergunta, de onde você é, ele acusava. Sua boca arreganhada devia ter sido subtraída a uma máscara de monstro e não lembrava nem de perto qualquer tentativa de contato amistoso.
Aquilo parecia um sorriso, mas não era um sorriso.
Apavorada, olhei para todos os lados e então percebi que não havia mais ninguém naquelas ruínas.
(...)
Estávamos completamente a sós, o monstro e eu.
Mais ninguém.
Aiaiai.
E então ele me tirou para dançar.
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Na época de seu lançamento Do fundo do poço se vê a lua dividiu opiniões. Enquanto no Twitter e nos blogs repercutiam boas impressões de leitores e escritores, pelo menos duas resenhas bastante negativas – uma delas publicada na Folha de São Paulo – circularam na internet. A quantidade de informações e acontecimentos ao longo do romance foi criticada e acusada de ter como objetivo esconder uma trama vazia. No entanto, são justamente esses vários eventos que constroem o intrincado enredo do livro. O autor já parte de um mote principal bastante complexo, mas não se furta a desdobrá-lo ao longo da narrativa. Ele não tem medo de perder o fôlego. E não perde. Nós que por vezes nos perdemos tentando alcançá-lo. Joca se esconde em vielas escuras do Cairo, de onde de repente aparece com mais uma surpresa, mais uma reviravolta mirabolante. A não-linearidade da narrativa – que em alguns momentos acompanha cronologicamente a vida dos gêmeos e em outros narra cada movimento das horas de estada de William no Cairo, que vai ao Egito atrás do irmão que não vê há anos –, e o ponto de vista narrativo propositalmente confuso e ambíguo ajudam a aproximar Do fundo do poço se vê a lua de uma narrativa cinematográfica e fazer do livro quase uma obra de realismo fantástico, mas que não deixa de se (des)organizar em torno do caos da realidade.




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Do fundo do poço se vê a lua
Joca Reiners Terron
Companhia das Letras
280 páginas
R$ 45,50



segunda-feira, 7 de março de 2011

Literatura dá samba

E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval
(Chico Buarque, Vai Passar)

— Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...
(João do Rio, O bebê de tarlatana rosa)

Já apertaram o botão da folia
Terreno de alegoria maior
E as avenidas já fervendo suadas
Que gigante tentação enfeitada
(Nação Zumbi, Carnaval)

Somos um povo muito variado e mesmo contraditório: o que para alguns parecerá defeito é, para outros, encanto. Quem diria que tantas pessoas bem comportadas, e aparentemente elegantes e finas, alimentam, durante trezentos dias do ano, o modesto sonho de serem ursos, macacos, onças, gatos e outros bichos? Quem diria que há tantas vocações para índios e escravas gregas, neste país de letrados e de liberdade?
(Cecília Meireles, Depois do Carnaval)

Sonho de uma terça-feira gorda

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros,
[ e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão constratado pelo sentimento felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como
[uma espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas
[extáticas.

E a impressão em meu sonho era que estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente negro,
— Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro
[ e luminoso!

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular,em cores cruas.

Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes — Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas — deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.

A turba, ávida de promiscuidade,
Acotevelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negro, negros...
mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
— A profunda, a silenciosa alegria...
(Manuel Bandeira)


Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. (Clarice Lispector. Restos de Carnaval)