segunda-feira, 18 de julho de 2011

A presença na ausência

A trivialidade do vazio em Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli.


No seu mais que clássico livro de 1965, Obra aberta, Umberto Eco caracteriza a arte como “uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados em um só significante”. Trago à tona essa reflexão apenas para introduzir a ideia que, dentro da dinâmica que envolve a recepção de uma obra de arte, entregar o jogo, na maior parte das vezes, pode ser considerado um problema. Quando não é claramente uma estratégia – romances tradicionais de detetive, por exemplo, nos quais cada detalhe é esmiuçado no último capítulo –, explicar demais pode acabar dando a impressão de ingenuidade ou pretensão. Em alguns casos, as duas coisas.

Mas talvez ambigüidade, a palavra usada por Eco, não seja exatamente a melhor definição do que acontece em Nada me faltará (Companhia das Letras, 2010), de Lourenço Mutarelli. Mais que a dúvida, é a absoluta falta de respostas, detalhes e maiores explicações que marca grande parte da narrativa.

Estruturado apenas na forma diálogos, a linha que comanda todo o livro é o mistério em torno de Paulo, um homem que simplesmente desaparece com a mulher e a filha e ressurge um ano depois, sozinho, sem memória e sem idéia do que possa ter acontecido durante esse intervalo de tempo. Ninguém sabe o que houve com Paulo durante todo esse tempo, onde está o resto de sua família e porque ele não se lembra de nada. Mas a pergunta mais intrigante, que vai guiar grande parte da tensão do livro é: por que Paulo parece simplesmente não se importar com tudo isso?

Entretanto, se por um lado existe o vazio de detalhes – do cenário, por exemplo, ou da própria trama –, os personagens são fortemente marcados e delineados através dos diálogos, sempre muito verossímeis, bem próximos do cotidiano, superando uma dificuldade comum a vários escritores, a de naturalizar o discurso direto. Nenhum traço de artificialismo mancha a escrita de Mutarelli, o que pode inclusive ser percebido também em um de seus livros anteriores, A arte de produzir efeito sem causa (2008), no qual uma história que tem contornos bastante surreais – pacotes misteriosos enviados por ninguém, códigos estapafúrdios e de resolução impossível e a participação mais que especial de William Burroughs – é narrada de modo a reproduzir perfeitamente o comum, o ordinário.

Só que ao contrário do que realiza em A arte de produzir efeito sem causa, em Nada me faltará Mutarelli optou por, de uma forma não explícita, resolver o mistério que perpassa a trama, o que pode fazer, inclusive, com que leitores menos atentos não percebam de forma definitiva a sugestão de resolução. No entanto, depois da leitura da obra, é fácil notar que essa é uma questão menor dentro da narrativa. O cerne do livro é, na verdade, a possibilidade da reflexão em torno de como a memória é a responsável pelo luto e pela melancolia e de como ela age em favor destes. Pois se o que faz o indivíduo se dar conta da perda é a comparação entre o antes e o depois e a constatação da lacuna, quando não existem lembranças não há parâmetro para comparação. Então ter tido e não ter mais não faz nenhuma diferença e a ausência não existe para quem não compreende o que de fato perdeu.



Um comentário:

  1. Bã. Li esse livro inteiro na Livraria Cultura e não tinha visto resenha até então. Ótimo livro

    ResponderExcluir